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Matéria publicada no jornal O Globo, 21 de dezembro de 2010 - Rio de Janeiro RJ

A morte da educação

Augusto Uchoa 

A notícia da morte de um professor universitário em Belo Horizonte me motivou a escrever este artigo. Um assunto complexo que é debatido entre os professores em encontros extraclasse. Creio que posso falar sobre o tema com certa imparcialidade, pois sempre fui aluno, sou aluno e há alguns anos atuo também como professor. Percebo um processo crescente de agressão a professores. Tenho visto que a ideia de "aluno-cliente" parece ter atingido seu ponto máximo de deturpação. A visão se tornou distorcida, talvez em função da linha tênue que separa os dois conceitos desta relação. Percebo uma cobrança máxima do professor pelos alunos e uma dedicação mínima por boa parte destes últimos.

Diferente de outros serviços, onde cada um tem plena noção do que pode e deve fazer no seu papel de cliente, bem como até onde pode exigir do prestador, a sala de aula não funciona bem assim. A literatura de serviços diz que os clientes possuem papeis a serem seguidos e, eventualmente, quando tais papeis não são exercidos como deveriam, tornam-se indesejados. Ou, numa situação inversa, o cliente, ao se deparar com incidentes críticos, como encontro de serviços insatisfatórios, muda-se para a concorrência. Simples assim.

Se em meio à comercialização de bens, onde a interação entre vendedor e comprador é menor, isto já acontece, em serviços, é ainda pior. Uma influência negativa ou fora dos padrões apropriados  para a boa relação entre as partes pode alterar a expectativa e a entrega de qualquer serviço como um todo, prejudicando os clientes que não têm nada a ver com isto. O caso do assassinato é o ápice do extremismo e deve nos fazer refletir sobre o modelo educacional mercantilista ao extremo, que alguns insistem em adotar. Numa visão prática deste extremo, convivo com professores que desenvolveram traumas de entrar em salas de aula e questionam seu amor por lecionar por conta desta relação, muitas vezes perversa, entre professores e alunos. Docentes que temem não agradar seus "clientes" e serem punidos - como já vi em algumas situações - por seus empregadores.

No setor de serviços, são os clientes os principais avaliadores do desempenho. Valho-me das palavras de um grande amigo que diz: "ser professor é uma das profissões mais difíceis do mundo, pois em poucas carreiras existem tantas avaliações por um número tão grande de pessoas". Esta condição é para quem realmente ama exercer a docência, para mim, tão nobre quanto desgastante. Lembro-me de muitos casos de agressão física a professores e não me recordo de ter visto tantos em outros modelos de prestação de serviços. Na classe médica, por exemplo, em que o marketing de serviços é classificado como mero serviço profissional e que tem na saúde o seu serviço núcleo, a possibilidade de insatisfação do   "cliente" me parece bem mais crítica do que na educação. Não seria? Minha proposta não é tomar partido em defesa dos professores ou da generalização dos maus exemplos de alunos; trata-se apenas do desabafo de uma pessoa que se posta diariamente à frente de dezenas de alunos, para oferecer-lhes os anos de experiência e estudos, e que tem sofrido, mais do que com a morte do colega, com a morte da Educação.

Como aluno, vale lembrar que não sou a favor de professores que não gostam de alunos, que não se reciclam, que se fecham para novas metodologias de ensino e se acham acima do bem e do mal. Rejeito os "senhores da verdade" que esqueceram que o binômio ensino-aprendizado é uma via de mão dupla. Ensinar a aprender é um processo de autoalimentação, pois para gerar o conhecimento em debates ricos que nos fazem pensar, refletir e questionar, é necessário mais do que um personagem. Por fim, vale ressaltar que parte de nós também morre com o assassinato do professor em BH. A relação professor-aluno sempre foi vista como sinônimo de vida; meus melhores amigos, meus ícones e minhas referências do que existe de melhor no ser humano vieram das salas de aulas, daquele local "sagrado", onde as pessoas desenvolvem as próprias essências. Como é sabido, o mundo evoluiu com a Educação; não com a guerra.