Matéria
publicada na Revista Veja, Edição 2164 / 12 de maio
de 2010 .
A
canção de qualquer mãe
Lya
Luft
"Filhos,
vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei
ou mereci ou imaginei ter"
Que
nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros, como
a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas generosas,
um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos
algo que só pode nascer entre nós. Que quando
eu me aproxime, meu filho, você não se encolha nem
um milímetro com medo de voltar a ser menino, você
que já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha,
você não se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente
adorada, como desde o primeiro instante.
Que,
quando se lembrarem de sua infância, não recordem os
dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo,
a saúde não tão boa, o casamento numa pequena
ou grande crise, os nervos à flor da pele aqueles
dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda
agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se
dos deliciosos momentos em família, das risadas, das histórias
na hora de dormir, do bolo que embatumou, mas que vocês, pequenos,
comeram dizendo que estava maravilhoso. Que pensando em sua adolescência
não recordem minhas distrações, minhas imperfeições
e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina,
a lição de casa na mesa de jantar, a sensação
de aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.
Que
quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem
em chamar: mãe! Seja para prender um botão de camisa,
ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer
baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas
escutar alguma queixa ou preocupação. Não é
preciso constrangerem-se de ser filhos querendo mãe, só
porque vocês também já estão grisalhos,
ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores, como eu tenho
e tive as minhas. Que, independendo da hora e do lugar, a gente
se sinta bem pensando no outro. Que essa consciência faça
expandir-se a vida e o coração, na certeza de que
aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não
entender vai absorver; e o que não absorver vai enfeitar
e tornar bom.
Que
quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento, ainda que com
passageira tristeza, porque todos devem seguir seu caminho, mesmo
que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro
seja de grandes abraços e boas risadas. Esse é um
tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando
estivermos juntos vocês encarem com algum bom humor e muita
naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se
eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes
só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas:
serão apenas de alegria porque vocês estão aí.
Que quando pareço mais cansada vocês não tenham
receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem
me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que
do seu carinho, da sua atenção natural e jamais forçada.
E, se precisar de mais que isso, não se culpem se por vezes
for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto
ou dor: as coisas são assim. Que, se um dia eu começar
a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não
os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa,
mesmo quando se impacientarem. Toda a transformação
do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma
forma de crescimento.
Que
em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe,
de qualquer raça, credo, idade ou instrução,
vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação
breve, a inapagável sensação de quando vocês
foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto
de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas
as glórias da arte e da ciência, mais sério
do que as tentativas dos filósofos de explicar os enigmas
da existência. A sensação que vinha do seu cheiro,
da sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali
havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino
e sua vida, nesta bela e complicada terra. E assim sendo, meus filhos,
vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei
ou mereci ou imaginei ter
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